sábado, 3 de janeiro de 2015

"UMA LUZ DO CHÃO"

Outro dia li uma crônica de Ferreira Gullar sobre a amizade dele com Vinicius de Moraes e Tom Jobim; em seu estilo despojado de cronista, descontraído, o teor humano de todo conteúdo. Velho leitor (principalmente da poesia) de Ferreira Gullar, tenho um pequeno relato pessoal sobre ele.
Precisamente em 1986, depois de exatos dez anos trabalhando na Av. Paulista, mudei de emprego e fui trabalhar em uma agência de publicidade na Av. Rebouças. Os meus agradáveis hábitos, adquiridos nas generosas duas horas de almoço na Av. Paulista, estavam demasiadamente enraizados em mim: visitas pontuais ao Masp — à sua pinacoteca, mostras itinerantes, concertos de música especialmente programados para quem trabalhava naquele pedaço extraordinário da cidade — os passeios no Trianon. Assim, me senti tão deslocado no outro endereço que, involuntariamente, na hora do almoço, eu saía, pegava uma das muitas linhas de ônibus que subiam a Rebouças e viravam na Paulista. Nela, eu saltava no ponto do Trianon Masp.
Na manhã em que aconteceu eu tinha conversado com um colega de estúdio. A conversa tomara  o rumo do assunto transcendental, da Religião. Citei um texto depoimento de Ferreira Gullar chamado “Uma luz do chão”, em que o poeta, na época de sua convicção marxista, fazia valer a sua fé no “homem humano” criando essa bela expressão, “luz do chão”; afirmando essa luz, a ser conquistada, e não recebida pelo homem como dádiva que descesse dos céus. Muito bem, na hora do almoço fui para Av. Paulista.
A manhã de inverno estava nublada, fria. Pelo famoso vão do Masp subi a dura escada de concreto, vazada, chegando ao primeiro andar, onde sempre aconteciam exposições itinerantes. Havia uma exposição de fotos, e o poeta estava ali, lentamente olhando. Nunca tinha visto alguém tão digna e inconfundivelmente poeta; em toda a sua figura, esmerada: roupas, expressão do rosto, a cabeleira; pele e cabelos muito bem cuidados; um artista mesmo. O espaço era pequeno e ele estava só. Eu me aproximei com a intenção de me referir à grata coincidência de, naquela manhã, exatamente, eu  ter falado no texto “Uma luz do chão”. Mas, curiosamente, o foco motivo que me impulsionou a abordá-lo fugiu; e eu disse apenas que era um admirador da poesia que ele escrevia; e ele respondeu: “que bom”. Falamos uma ou outra trivialidade; ele disse que estava matando um pouco o tempo antes de embarcar para o Rio de Janeiro. Despediu-se. Fiquei um instante olhando a exposição de fotos, mas quando descia de volta a escada de concreto, ainda vi o poeta na outra calçada da Avenida Paulista, caminhando vagarosamente, bem agasalhado, com as mãos para trás, a cabeleira... Qualquer pessoa, atenta, transeunte da avenida, teria a certeza que se tratava de um poeta; mesmo sem conhecer Ferreira Gullar.

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