quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

ABC DO FUTEBOL

 Nasci no Bairro Campestre, na periferia verde da cidade de Santo André, quando esse nome se justificava. Quando eu tinha três anos a minha família mudou-se para a distante Vila Curuçá, então, meia dúzia de casinhas entre morros, do outro lado da estrada de ferro, de onde veio o hábito de falar “ir a Santo André” quando alguém precisava ir ao centro da cidade. Quando comecei a sair para as ruas, com oito, nove anos, a turma da Rua Araci, no centro do Curuçá, rua leito das enxurradas das chuvas, já estava formada e o futebol corria solto. Os campos se multiplicavam ao longo das margens da estrada de ferro, fundo das fábricas, terrenos baldios. Nas vilas os moradores começaram a fundar os clubes: do nosso lado, o Curuçá, o Bonsucesso, Nacional, Ouro Verde. Realizavam-se festas e bailes nesses clubes, mas o futebol estava no centro deles, nasciam rivalidades. A nossa várzea futebolística era no Bangu, em dois campos de terra vermelha, mas havia ainda o campo do Nacional na crista de um morro, meio careca no topo, em que o goleiro via o adversário descendo com a bola na direção de seu gol. Depois, o campo do Nacional mudou-se para mais distante, numa grande área terraplanada, perto das vilas novas, onde é hoje o cemitério do Curuçá. Lá se jogava um futebol viril mas de classe, a bola de pé em pé, o estalido dos chutes, o alarido das torcidas nas beiradas do campo, os times bem uniformizados.
A prática do futebol era tão massiva no Brasil nesse tempo, que as disputas do futebol profissional mantinham-se regionais. Eram cinco grandes clubes só na capital — além dos pequenos, Juventus e Nacional. No interior (celeiro de craques) os clubes pontuavam em Campinas, Araraquara, Piracicaba, Bauru, Ribeirão Preto e tantas outras cidades. No litoral o Santos. O luxo em forma de disputa interestadual fixava-se no Torneio Rio São Paulo. Lembro-me, nos meados desses incríveis anos cinquenta, de um moleque, rindo, tentando imitar um pretinho que surgia no Santos, assombrosamente, fazendo muitos gols: Pelé; que por sinal, fez a sua estreia profissional em Santo André, no campo do Corinthinhas. Foi dessa prática intensa e extensa que se construiu a grandeza do futebol brasileiro. Daí só poderiam surgir mesmo, os “malabaristas” (como eram chamados os jogadores brasileiros no exterior), Pelé, Garrincha, Didi, que encantaram o mundo e conquistaram a primeira Copa para o Brasil. Nada ultrapassou, anulou mais a divisão da sociedade em classes, foi mais democrático e justo com o talento no Brasil, do que o futebol.
Aos poucos, na idade adulta, o meu sentimento sobre o futebol começou a não identificá-lo mais como algo inteiramente positivo; desde a sua essência. Submeter, vencer (expediente de quase todo esporte); fazer o outro chorar. O melhor jogador é o mais ardiloso, aquele que, em sua incrível habilidade engana melhor (incluindo o juiz), o que se finge de morto para dar o endereço inesperado à bola, surpreende o adversário, chega ao gol e o derrota. Jogo (com a sua taxa de sorte e azar) viril, desenvolvido com os pés, mas incluindo toda a força das pernas, junta-se à malícia a violência, o antijogo, deslealdades sem paralelo em outro esporte. Nessa altura passei a desprezar também o torcedor: torcer é, e sempre será, a condição de seres inferiores; aqueles, cuja baixa satisfação depende de outro — no caso do futebol profissional, o que recebe, às vezes, um salário astronômico, tamanho é o peso de sua responsabilidade diante da massa; do esforço para corresponder, suprir a cota de gozo (ou frustração) dos que apenas torcem.
Mas, de repente, desperto: que bela festa é a Copa; bandeiras, cores, nações reunidas, choro e alegria, o fair play, um tapete verde natural se estende, crianças uniformizadas, orgulhosas, encantadas, de mãos dadas com os craques, emoção, catarse — a Copa no Brasil. "O futebol é a continuação da guerra por outros meios”, como o definiu o escritor George Orwell; porém, guerra em que, entre mortos e feridos, todos se salvam. Não consigo decidir-me: amar inteiramente o futebol? Sem em algum momento detestá-lo?(Então, uma vaia uníssona ao hino nacional do adversário, me devolve a aversão ao torcedor).
Lembro-me finalmente que o futebol, nos tempos em que eu o jogava, nunca me levou para além do lúdico, da diversão, gostava de praticá-lo com os amigos; mais do que vencer, para mim, o gol era a coroação depois de conseguir passar a bola por entre as pernas do adversário; alçá-la, amortecê-la, tratá-la com jeito, carinho; esforço inaudito debaixo do sol ou da chuva, o prazer dos corpos, jovens, em expansão, vida plena a plenos pulmões — como o sexo na juventude, momento único de plenitude e aceitação, de criaturas com consciência de que terão que morrer um dia.

BÊBADOS

“Não bebo por mero alegrar-me com o vinho nem para zombar da fé — não, é só para esquecer de mim mesmo por um momento que desejo embriagar-me, só por isso.”
OMAR KHAYAM
“Bebo, porque é líquido”
JANIO QUADROS

 Ouvi dizer que o poeta Vinicius de Moraes chamava o whisky de “cachorro engarrafado”, “o melhor amigo do homem”. Escutei também uma história, acho que próxima do fim da vida do poeta, de que certo letrista de música popular foi visitá-lo uma manhã. Quando entrou, depois de alguém atendê-lo na porta, viu Vinicius no fundo da sala. De sua parte, ao ver o amigo, de longe Vinicius abriu os braços, de satisfação; e caiu-lhe as calças. Há muito para se recordar de Vinicius, mas para a esse letrista ficou essa imagem final do poeta, de braços abertos, só de cuecas, as calças no chão. Como devia estar bêbado, eu  imagino que o incidente nem tenha incomodado Vinicius. Aliás, tive um amigo (entre outros que bebiam) que já havia me descrito a dificuldade de um bêbado para vestir as calças: acertar uma perna no buraco enquanto se equilibra na outra.
Houve a famosa trinca de escritores americanos alcoólatras, Scott Fitzgerald, William Faulkner, Ernest Hemingway. Fitzgerald morreu aos quarenta e quatro anos, aniquilado por um alcoolismo pesado; Faulkner morreu mais velho, mas aos cinquenta já estava exaurido pelo consumo de álcool; Hemingway, em certa altura, estéril para escrever, colocou os canos de uma winchester na boca e puxou o gatilho. Posterior a essa vem a outra trinca, Jack Kerouac, William S. Burroughs, Allen Ginsberg, escritores que no contexto em que estou escrevendo, além do álcool, foram pioneiros no uso das drogas. De Kerouac e sua obra “On the Road” vem o movimento beat. Tive um amigo de juventude que assimilava toda essa pinta na máquina de escrever: cigarro no canto da boca, amante do jazz, muita bebida; "rebel without a case" com cenário pronto. Escrevia uns textos curtos e bem complicados. Isso faz muito tempo e não sei se ele escreveu alguma obra mais extensa. Não vi publicado. É frequente associar a bebida à criação literária, mas não é incorreto afirmar: escritores que bebiam e escreveram obras relevantes o fizeram, apesar da bebida; e sem ela, não há dúvida, teriam escrito mais. Aliás, muitos alcoólatras célebres no final procuraram as clínicas, ou o que se chama AA. No desespero de escapar do inferno nem há tempo para fundar uma AC, para Alcoólicos Célebres.
Da bebida morreu Sócrates — não o grego, que por sentença de morte tomou cicuta — mas o Sócrates Brasileiro, grande jogador de futebol que bebia vinho; Brasileiro assim, até no nome, que contrariou não só os alertas da OMS, mas também aquilo que seria a sua própria orientação, visto que era médico. Outro Brasileiro no nome era o Antônio Carlos, o Tom Jobim,  grande maestro e compositor, alcoólatra, que no final da vida escapou do alcoolismo através do espiritismo. Outros tantos alcoólatras, famosos ou não, sabendo muito bem o que é o inferno procuraram o fervor das religiões para dificílima manutenção da abstinência. Frequentemente gente bondosa, paciente, chama o alcoolismo e o vício das drogas (no fundo dá tudo no mesmo) de doença e pedem compreensão nesse sentido. Tudo bem, mas doença no fim, por que no começo, diante do alerta e da recomendação de qualquer instância ou pessoa a resposta dos bebedores de plantão, pelos bares afora, é o riso. São as “criaturas da noite” como os chama a propaganda, insensível ao luto nas famílias, das vítimas dessas “criaturas da noite” dirigindo alcoolizadas.
Lembro-me de quando a plêiade de bebuns do semanário O Pasquim alardeava: “intelectual não vai à praia, intelectual bebe”. Ora, se alguém que vai à praia não merece atenção especial, que grande coisa pensam que são os intelectuais? Recentemente um sobrevivente do Pasquim apareceu, internando-se muito doente, confessando que durante a vida bebera uma “piscina de cerveja”. Ainda por esses dias assisti uma “edificante” reportagem na Globo News sobre o “lar”, o lugar onde mais seria sentida a ausência do recém falecido escritor João Ubaldo Ribeiro, o Boteco do Tio Sam. Entrevistaram o português (cheio de sotaque) dono do bar, e nesse ambiente de antevisão da saudade, da falta que faria o escritor, ninguém reparou na ironia: o dono do bar um português, o escritor, baiano, brasileiríssimo, que escreveu “Viva povo brasileiro”, tudo isso em um bar chamado Boteco do Tio Sam, com a consagrada imagem do americano de cartola, sobre a porta apontando o dedo.
Às vezes recordo os meus bêbados particulares — os da família, os amigos de infância, juventude, maturidade. É personagem demais, histórias demais. Em resumo: mais longínquo o Totico, figura que no meu bairro as mães utilizavam para assustar as crianças, para elas não saírem na rua. No entanto o Totico era criatura inofensiva que só olhava de longe, com os olhinhos assustados; bronzeado de tanto tempo que não tomava banho; morava numa cabine de caminhão abandonada num terreno baldio. Outro bêbado da vila era um jornaleiro pernambucano de quem já não lembro o nome (eu, viciado na leitura de jornais sempre tive amizade com jornaleiros). Esse pernambucano alternava bebedeiras com períodos de abstinência, contidos em agonia religiosa, lendo Bíblia. E tudo acabava sempre numa terrível queda na cachaça, emborcado no próprio vômito, a banca de jornais abandonada. Dos bêbados da família lembro daquele que uma noite colocou a mulher e os filhinhos no meio da tempestade, fechou a porta e ficou dentro de casa, no tépido conforto do lar e na companhia apenas de sua garrafa de cachaça.
Alguns amigos, na juventude, tentaram me levar a tomar um porre; coisa de iniciação — andar em turma da nisso. Não topei, o porre de esquerdismo, outra doença da juventude, foi suficiente para me deixar um déficit de tempo perdido sem remédio. Assim, fica dito, para não ficar em cima do muro: para mim álcool e drogas não merecem consideração positiva sob nenhum aspecto. Nunca vi as drogas como algo além da apelação, um botão, um click para o puro hedonismo; tentativa desonesta de potencializar uma instância pertencente à natureza e, consequentemente, aos seres humanos: o prazer. Quanto às bebidas (o vinho em particular), em quantidade moderada reconhecidamente faz bem à saúde; além do maravilhoso paladar. Mas o que o bebedor busca na bebida, de fato, é o estado etílico; o entorpecimento, a fuga. Pode-se compreender essa fuga, quanto a pessoas em estado depressivo profundo, desespero, originado na realidade, num grande desgosto amoroso, em perdas dolorosas. A bebida pode ser um lenitivo.
Há moral em tudo que escrevi acima? Sim. Moralismo não. Moral, com a ressalva do gênio de Freud; “O homem não deixa de fazer determinadas coisas porque a moral o impede. Mas, cria a moral para não fazer determinadas coisas”.

terça-feira, 30 de dezembro de 2014

Crônica Sentimental em um tempo de todos (4)

O congestionamento das velas e dos mastros no cais. Na Avenida Costeira Felisa toma a ultima condução e desaparece para sempre. Dela, fica apenas o travo e a luz de uma doida nostalgia, um quase soluço.

Já havia uma tristeza irremediável esperando, desde o primeiro instante em que imaginei Felisa, sentimento pertencente a uma esfera maior do que a minha e, ao mesmo tempo, rigorosamente peculiar ao meu mundo interior. Tive um árduo trabalho até Felisa configurar-se, enquanto ela se debatia para abandonar o limbo. Uma garota prodigiosa. Percebo agora que o f de (F)elisa, esconde o outro nome. Então, é como se Elisa voltasse apenas para me dizer: passei por tua vida para dar forma a essa tristeza, para que ela, ao te pertencer, conformasse um dia a tua personagem...

Rilke aventou a hipótese de que o nosso ritmo no Universo, talvez fosse o da tristeza: estou andando por uma cidade desconhecida, à noite, a minha mulher partiu e nunca mais voltará, não terei mais qualquer chance de reencontrá-la ou de encontrar qualquer outra mulher, “noites brancas, sem mulheres.” Porém, de repente, passando de uma noite a outra, de um sonho a outro sonho, numa revigorante primavera anoitece e Fanny me espera, namorada;  sem laço ou compromisso algum além de ser a minha  namorada; vem, brota, e o seu sorriso, e os seus olhos lindos, plenos de noite escura, avançam e deitam sobre mim a sombra fatal da mais arrebatadora felicidade.

Hoje, isento da política, trabalho e tento recriar; recorro às palavras, à pintura, em difícil labor diário, tento me aproximar (escravo feliz) desses conteúdos ardentes, desse dia e noite que passa, volta e continua, sem memória, sobre o caminho de retorno ao jardim primordial.

Crônica Sentimental em um tempo de todos (3)

Só consegui reter Elisa por alguns minutos, tempo de atualizar um pouco as peripécias de nossas vidas de estudantes. Quando eu quis tocar no assunto pessoal ela evitou; se foi. Nunca mais a vi ou soube qualquer coisa dela. Talvez, ela fosse prisioneira de alguma complicação afetiva, da qual nunca tive ideia, que a levava a me rejeitar exatamente por gostar de mim.

Estava terminando o ano de 1973 e a esquerda, em todas as suas nuances e dissidências, se recolhia, limitava-se a “lamber as feridas”. Em 1971 o Capitão Lamarca tinha sido morto no sertão da Bahia, chegando ao fim depois de uma agoniada fuga. Um pouco antes dele morrera também Iara Iavelberg a sua bela companheira. Aliás, ela matou-se com um tiro no coração no calor de um tiroteio, em meio ao gás lacrimogêneo, na eminência de ser presa e interrogada. Segundo relato na obra de Elio Gaspari sobre a Ditadura Militar Brasileira, Iara foi transportada ainda com vida, mas o policial que a levava apoiada no colo dentro da viatura, disse ao que dirigia, que não havia razão para pressa, que ela acabara de morrer. Em São Paulo, Joseíta Ustra, mulher do comandante do Doi Codi do II Exército, que acompanhava a história da paixão do casal guerrilheiro lendo cartas capturadas, ao saber da morte de Iara não conseguiu conter uma lágrima.

E por falar em Doi do II Segundo Exército, fui preso duas vezes. Sem militância logo fui solto. Mas, conheci o endereço do inferno, o Doi Codi na Rua Tutóia. Em meados dos anos oitenta abandonei o esquerdismo, sem outra opção política, e o meu pensar tornou-se mais livre e pertinente.


Sonho com Elisa de vez em quando; sonho que namoramos e ela me abandona. É um sonho recorrente e, embora tanto tempo tenha se passado, quando acordo sinto a força de uma estranha realidade; presente, mas, misteriosamente anterior à minha própria história pessoal. Só recentemente julguei entender o olhar de Elisa naquela noite em que a vi pela última vez.

Crônica Sentimental em um tempo de todos (2)

O ano de 1968 “nunca terminou” e Fanny se foi para, no ano seguinte, começar a estudar em alguma faculdade da região. Eu não entrei na USP o que só conseguiria um ano depois, amargando mais um período de preparação para o vestibular. Não consegui dizer a Fanny que queria namorá-la e a sua figurinha linda partiu (na realidade) para ficar em meu pensamento, juntando-se à Deise, Elenita, Beatriz, outros amores platônicos —e Elisa. Porém, com Elisa foi diferente: a fórceps arranquei de mim, para ela, uma declaração de amor.

Já estávamos em 1971 e as últimas datas do calendário dos anos rebeldes já tinham virado, as nuvens cinzentas, pesadas, dos anos de chumbo, baixavam sobre nós. Destroçada a guerrilha, varridas as barricadas, a mão implacável da repressão caiu sobre os velhos Partidos Comunistas. A via democrática para socialismo que começara a ser trilhada no Chile terminaria em 1973 num banho de sangue.

Um amante da literatura, e péssimo aluno de letras, era eu; já Elisa, uma aplicada aluna do curso de letras anglo-germânicas. Procurou a minha amizade, andamos juntos um semestre, ela me emprestou um disco da Joan Baez. Elisa era magrinha, quase etérea. Me apaixonei aos poucos por ela, mas foi um caminho sem retorno. Não me correspondeu; misteriosa, não me disse porque. Desapareceu no segundo semestre. Passei quase dois anos procurando uma pista que me levasse a ela, sem sucesso. Mudei o meu curso para o período noturno.  Uma noite qualquer eu, distraído, sentado  em um banco de um dos corredores da faculdade, escutei um fio de voz feminina chamar o meu nome. Ergui a cabeça e Elisa estava na minha frente, abraçada com os cadernos, a cabeça inclinada um pouco para a direita, sorrindo tristemente. O meu olhar, tenho certeza — e talvez ela também tenha percebido —, expressava quanto eu tinha esperado por aquele momento.

Crônica sentimental em um tempo de todos (1)

“Os anos sessenta acendiam-se promissores”, escrevi em algum lugar. 1968 foi  uma labareda, fogo que nunca se apagou inteiramente: “O ano que não terminou”, segundo Zuenir Ventura. Nas capitais brasileiras os estudantes foram para as ruas contra a Ditadura, ergueram-se barricadas em Paris, a Argentina engendrava o Cordobazo. Eu me preparava para o vestibular. Só a USP interessava; espaço único, pronto, de oposição política. Entre os meus professores, alguns apareceriam depois nos cartazes de terroristas caçados pela polícia da Ditadura. Assim encontrei o meu professor, e amigo, Chizuo Osawa o “Mario Japonês” da VPR, sigla de facção revolucionaria comandada pelo temido Capitão Lamarca.

Pensando na revolução, solitário, tímido, eu queria encontrar uma namorada. Sem que me desse conta Fanny chegou e veio sentar-se comigo na classe. Era, antes de mais nada, uma bela garota: pequena, delicada, cabelos curtos, pretos, tez clara. Só me lembro dela vestida em saia justa e blusa, como se viesse direto do trabalho para a escola. Num começo de noite, andando por Santo André vi Fanny saindo da porta iluminada de um edifício e, de repente, achamo-nos juntos e juntos fomos para a escola, subindo as feéricas calçadas da Rua Coronel, atravessando as luzes. Sentamos, os dois, sozinhos na classe. Uma colega chegou e quase disse que estávamos namorando. Não estávamos. Acho que Fanny gostava de mim; quem sabe, do meu jeito tímido, interessado pela literatura. Fiz um desenho para ela. O ano de 1968 seguia rumo à encruzilhada rebelde. Para mim, foi ano de Fanny, figura linda, fragrância no correr das noites, sonhos de revolução, canções de protesto. Porém, McArthur Park, longa canção-performance, americana, é que ressoa ainda hoje na minha cabeça como a marca sonora daquele ano.

BABEL

De repente, aos nossos ouvidos, soam ruídos incongruentes, incompreensíveis; quando escutamos outro idioma, inteiramente desconhecido para nós. É assim também que nos escutam, quando falamos, aqueles para quem somos estrangeiros. Essa, todos sabem, é a dificuldade universal da linguagem verbal. A escrita traz mais dificuldades ainda, e no interior do nosso próprio idioma a tarefa permanece árdua: falar é difícil, escrever mais ainda.