quinta-feira, 16 de junho de 2011

ABC

Escrevi um romance para "guardar a vida em palavras" — na expressão de Ferreira Gullar.

(...)  A Alfieri coube o A do ABC, Santo André, pedaço bastante significativo do antigo subúrbio operário, cidade próspera, que ao lado de São Caetano e de São Bernardo, conformaram uma região de incomparável labor; concentração humana, assentada em função de um parque industrial impressionante, com um desenvolvimento inédito no Brasil. O ABC, chamado muitas vezes de nação, república, nos dias atuais com o seu perfil já bastante modificado, tornado parte apenas da Grande São Paulo, deixou marcas em quem vivenciou o seu apogeu.
 A pobre vila onde Alfieri passou a infância nos anos cinquenta mudou tanto a fisionomia, que só os poucos, atentos e saudosos olhares, ainda identificam os seus vestígios. Restou para moradores antigos, apenas as  lembranças das primeiras casinhas, distribuídas entre dois morros, lugar qualquer do mundo, onde tudo o que era humano e social, estava ainda por enraizar-se, crescer, transformar-se. O seu nome era, era... qualquer nome: Santa Teresa, Sabrina, Vila Joá, Ribeirão, Curuçá.  Um dia, ali, no início dos anos cinquenta, paisagem, criaturas, uma incipiente vida social, começaram a interagir. A vida na vila cresceu rapidamente, estendendo-se até as fábricas nas margens do rio; até o núcleo velho da cidade. Havia em tudo, algo de intensamente recíproco, um amálgama humano: a vila, Santo André, o ABC. Muitos vieram para aquele lugar, como a família de Alfieri, e uma, entre tantas lembranças suas, era a dos alemães na primeira fábrica em que trabalhou, aflitos, falando rudimentos do português, ansiando comunicar-se de qualquer maneira com os operários. Ninguém ficou imune à cidade, ninguém ficou no mesmo lugar, no mesmo status social, material, humano; todos se expandiram com a força que as cidades do ABC irradiavam, desde a sua poderosa engrenagem, com polias e correntes, máquinas, braços, tubulações pulsando, coração e cérebro, sindicatos — o trabalho —, que não sendo uma panaceia como quis ser o socialismo, foi capaz de aglutinar as pessoas,  mante-las concentradas, humanas no que o trabalho significa para seres humanos, movendo-os num turbilhão produtivo, enquanto o que produziam escoava pelos trilhos da velha São Paulo Railway, descendo a serra até o grande porto de Santos, para ganhar o mar, o mundo. Todos chegaram estrangeiros ali e muitos, quem sabe, foram devolvidos estrangeiros em outro lugar, pela aventura, depois pela saudade do ABC, o abc de uma vida mais rica em labor e sentido: italianos, portugueses, alemães, norte-americanos, judeus, árabes de muitos países. Para Alfieri houve, além de tudo, aquela luz, tão característica do lugar, filtrada na fumaça e na neblina da serra que alcançava a cidade, a paisagem deslumbrante, revelada e destruída, e depois, a luz da natureza dando vez à  melancólica luz do subúrbio operário, que ele sempre amou e identificou como algo que lhe dizia respeito em particular, porque, como disse um dia Marc Chagall, sempre haveria artistas atraídos pela luz. (...)