Depois do que escrevi sobre a abstração, em
contrapartida afirmo o império da figura na arte do século vinte: o Surrealismo.
O surrealismo pode ser identificado em qualquer tempo, como vertente fantástica
da arte; e permanece ativo e fecundo na expressão artística contemporânea. Ele
foi e é caro para nós, porque a figura nos é cara; e se prescindir da figura foi
uma opção de um grande número de artistas na pintura do século vinte, ela é uma
negação que, longe de suprimir, realça com mais força o que nega; faz isso, quanto
mais radical for essa negação.
Ao
aventurar-se pelos meandros, até o interior da mente, propondo a sua expressão
direta, automática, o Surrealismo quis chegar ao recôndito, ao que é básico na
condição humana: os sonhos; suas imagens; o confronto Civilização (Cultura,
Vida Social, Religião) com os nossos desejos primários, com as nossas angústias
animais. E a realidade, dependendo da sensibilidade de quem a contempla, apresenta-se,
ela mesma, muitas vezes fantástica: a natureza, os incidentes, até mesmos os
fatos cotidianos sob uma luz ordinária, muitas vezes, é como uma fábula de
Kafka “a vida é assombrosamente curta. Agora ao recordá-la, aparece-me tão
condensada, que, por exemplo, quase não compreendo como um jovem pode tomar a
decisão de ir a cavalo até o povoado mais próximo sem temer — e descontando
certamente a má sorte — que mesmo o lapso de uma vida normal e feliz não chegue
para começar semelhante viagem”. O extraordinário, o perturbador, nos espreita
—os sonhos, esse fluxo que nos coloca em situações bizarras, incompreensíveis.
O fascínio pela figura é perene, mais ainda na percepção extra sensível do
artista. O poeta Octávio Paz, que
conviveu e teve amizade com membros ilustres do Surrealismo, como André Breton
e Luis Buñuel, situou esse movimento, “O que distingue o Romantismo e o Surrealismo
do resto dos movimentos literários modernos é o seu poder de transformação e
sua capacidade para atravessar, subterraneamente, a superfície histórica e
reaparecer outra vez. Não se pode enterrar o Surrealismo porque não é uma ideia
e sim uma direção do espírito.”
Embora
expressões ricas da
pintura — ao mesmo tempo primitivas, ingênuas — como Miró e Chagall tenham tido
participações laterais no Surrealismo, os artistas que o militaram (esse é o
termo) o fizeram com total entrega e convicção. No caso da pintura, reencontramos
no surrealismo, volumes trabalhados, utilização da perspectiva para representar
o espaço; elementos tradicionais dessa arte que foram reutilizados sem
cerimônia pelos pintores surrealistas. Basta olhar para os quadros para sentir
esse revigoramento da figura.
P.S. Durante o século passado abusou-se da vertente
fantástica da arte, tanto na pintura como na literatura, tornando-a, em muitos
casos, artificial e retórica. Não sou apreciador da pintura de Salvador Dali,
que enquadro como pioneiro no vício da expressão fantástica que estou
criticando. Separo, em contrapartida, dois nomes que aprecio de forma
particular como exemplo da melhor pintura surrealista: Max Ernest e Paul
Delvaux.
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