“Não existe arte sem um grau de abstração”, afirmou
Fayga Ostrower, artista e educadora. O mais convicto naturalismo também abstrai,
pois, como todo esforço para representar a realidade ele é, no final das contas,
um artifício; e portanto, é seletivo. Um pouco de reflexão também logo nos levará à
conclusão de que é impossível reproduzir a realidade na arte.
Ao fazer de saída essas afirmações, atenuamos a
polêmica sobre a proeminência, seja do modo figurativo, seja do modo abstrato,
como expressão pictórica mais válida. Polêmica que chegou a ser calorosa no
século vinte e que às vezes ainda reacende no meio artístico e no mercado de
arte.
No inicio do século passado foi possível ver, de
forma até didática, o momento da passagem, da figura para a abstração;
principalmente em Kandinsky; mas é necessário frisar que o impacto, a reação no
meio artístico quando da produção das primeiras pinturas abstratas, ocorreu no
contexto burguês, individualista, da arte europeia, depois de séculos de um
figurativismo poderoso. Contexto burguês de artistas, entendidos já como mais
do que artesões apenas, mas como homens de cultura. É necessário, finalmente, deixar assinalada a ressalva, que motivos
abstratos (arabescos, geometria) foram maravilhosamente desenvolvidos na arte
islâmica, e também na produção de padrões de tecidos, em outras culturas.
Feitas as
ressalvas, ao observar o caminho evolutivo contemporâneo da abstração, vamos até a utilização de materiais, superfícies, que viriam a extrapolar o uso convencional de telas e tintas; além de constatar que o artista, opta pela abstração normalmente o faz depois de passar pela figura, e que a abstração é opção mais
autêntica e consistente, depois disso. É aconselhável, portanto, que o
jovem estudante, e futuro artista, comece por estudar e tentar dominar os
segredos da figura para, só então, se sentir necessidade, optar pela abstração.
A arte abstrata, pode-se dizer, é um estágio intelectualizado
da arte, distanciado do caráter mágico da figuração; desenvolvendo-se na maturidade do artista. Ao dispensar a referência à natureza e aos artefatos
que povoam a cultura humana, no caso da pintura, ela torna-se só pintura — arte pura — opção
defendida em termos teóricos e às vezes, até mesmo em termos religiosos, por
alguns artistas no do início do século vinte.
Em seus sinais mais remotos a pintura foi figurativa. Ainda
hoje o impulso comum de quem começa a desenhar, a pintar, é figurativo; esforço
em parte inconsciente, de intenção mágica; tentativa de exercer domínio sobre a
realidade: desenhávamos (quando crianças) ou desenhamos adultos, aquilo que nos
fascina ou o que nos causa temor; e é praticamente inevitável que isso apareça na forma/figura.
A plenitude da arte clássica; (e o seu posterior
renascimento), estabeleceu-se com o domínio da representação da anatomia humana,
com o domínio da representação de todas as formas da natureza, estendendo-se à
figura dos artefatos criados pelo homem. Tudo isso regido dentro da conquista
da ilusão de profundidade no espaço bidimensional da folha de papel, da tela ou
das paredes; pelo método da perspectiva. A esse conhecimento somou-se a
técnica do claro escuro para transmitir a sensação de volume. Poucas conquistas
na esfera das artes visuais fascinaram tanto, foram tão arduamente alcançadas, como
a representação da profundidade e do volume no espaço bidimensional.
Vale
refletir: porque essas conquistas foram quase que inteiramente desprezadas pela
arte moderna?
Sem dúvida o prestígio da ciência e as suas
descobertas desafiaram a arte, colocaram diante dela uma nova compreensão da
realidade, desafiaram um novo caráter naturalista. Perderam a proeminência na
pintura, a relação fundo figura, a ilusão de primeiro e segundo plano — perdeu
valor, o caráter ilusório da arte, enquanto crescia a importância da expressão
da simultaneidade, os efeitos da luz natural sobre as formas. Ver a figura em
todos os seus lados, simultânea e instantaneamente, decomposta, (analítica ou
sintética), como no Cubismo; ver as formas sob o efeito da luz natural ao levar
a pintura para fora do estúdio, como fizeram os pintores impressionistas, foi tentativa
de alcançar outro patamar naturalista. Assim, é compreensível a rebeldia diante
do cânone clássico: uma nova sensibilidade artística solicitava novos
conhecimentos, novas atitudes e soluções plásticas; livres do dogma da academia.
Mas, o impressionismo e o cubismo, mantiveram-se ainda dentro da expressão
figurativa; a pintura abstrata foi além: buscou a independência do fazer
artístico; livre da natureza, e de qualquer preocupação que não fosse a arte em
si mesma. Ao abstrair, os pintores chegaram a modos extremamente sintéticos, sutis,
de pura arte.
Por isso, a arte
abstrata é forçosamente sofisticada; trouxe para grande parte do público uma
dificuldade, muitas vezes, insuperável de apreciação. Passou a ser necessário
descondicionar-se da grande tradição figurativa, ter conhecimento dos
fundamentos da linguagem pictórica (o que demanda estudo) para apreciar essa
arte.
Isso foi bom para a pintura? E porque o
figurativismo nunca foi inteiramente superado, e se renova na sensibilidade de
novos e autênticos artistas? Essas perguntas demandam um aprofundamento do que
foi anotado brevemente aqui.