sábado, 10 de janeiro de 2015

SOL IMPIEDOSO

Lágrima flor,
flor que morre e perfuma
quem corta
e prossegue enfeitando já morta
mesmo a quem não lhe quer" ...
Outubro fecha, terrível; sem chuva, sem nuvens sequer. Vejo da janela do apartamento os telhados das casas, lá em baixo, "rachando" debaixo do sol inclemente. As Sibipirunas floridas salvaram ainda uma vez o outubro; não sei até quando salvarão. Árvore comum nas cidades de São Paulo, elas, em algumas ruas privilegiadas, forrou-as com um tapete amarelinho, gotejando lenta e lindamente esse amarelo pelas horas dos dias inteiros. Na casinha em que tenho o meu atelier a vizinha tem o bom senso de manter as suas árvores de fundo de quintal; que acabam, por proximidade, sendo minhas também: uma mangueira frondosa, cujas mangas começam a amadurecer, um limoeiro grande e uma planta arbustiva que eu não sabia o nome até ter uma surpresa agradável esse ano. Essas árvores se erguem como uma parede verde acima do muro, tapando o sol excessivamente quente dessa época do ano, mantendo o meu ambiente de trabalho permanentemente fresco. Pois bem, a surpresa agradável ficou com o arbusto, que invadiu o meu pequeno quintal quase impedindo a passagem entre ele os meus arbustos de vaso. Eu e minha esposa cogitamos podá-lo para facilitar a passagem; mas, como instinto de preservar foi mais forte, adiamos a poda. De repente, fomos presenteados: os galhos que avançaram para o nosso lado tingiram-se de vermelho; identificamos o arbusto na alegria de fazer a nossa primeira coleta de acerolas.

SOBRE O SURREALISMO


Depois do que escrevi sobre a abstração, em contrapartida afirmo o império da figura na arte do século vinte: o Surrealismo. O surrealismo pode ser identificado em qualquer tempo, como vertente fantástica da arte; e permanece ativo e fecundo na expressão artística contemporânea. Ele foi e é caro para nós, porque a figura nos é cara; e se prescindir da figura foi uma opção de um grande número de artistas na pintura do século vinte, ela é uma negação que, longe de suprimir, realça com mais força o que nega; faz isso, quanto mais radical for essa negação.

 Ao aventurar-se pelos meandros, até o interior da mente, propondo a sua expressão direta, automática, o Surrealismo quis chegar ao recôndito, ao que é básico na condição humana: os sonhos; suas imagens; o confronto Civilização (Cultura, Vida Social, Religião) com os nossos desejos primários, com as nossas angústias animais. E a realidade, dependendo da sensibilidade de quem a contempla, apresenta-se, ela mesma, muitas vezes fantástica: a natureza, os incidentes, até mesmos os fatos cotidianos sob uma luz ordinária, muitas vezes, é como uma fábula de Kafka “a vida é assombrosamente curta. Agora ao recordá-la, aparece-me tão condensada, que, por exemplo, quase não compreendo como um jovem pode tomar a decisão de ir a cavalo até o povoado mais próximo sem temer — e descontando certamente a má sorte — que mesmo o lapso de uma vida normal e feliz não chegue para começar semelhante viagem”. O extraordinário, o perturbador, nos espreita —os sonhos, esse fluxo que nos coloca em situações bizarras, incompreensíveis. O fascínio pela figura é perene, mais ainda na percepção extra sensível do artista.  O poeta Octávio Paz, que conviveu e teve amizade com membros ilustres do Surrealismo, como André Breton e Luis Buñuel, situou esse movimento, “O que distingue o Romantismo e o Surrealismo do resto dos movimentos literários modernos é o seu poder de transformação e sua capacidade para atravessar, subterraneamente, a superfície histórica e reaparecer outra vez. Não se pode enterrar o Surrealismo porque não é uma ideia e sim uma direção do espírito.”

 Embora expressões ricas da pintura — ao mesmo tempo primitivas, ingênuas — como Miró e Chagall tenham tido participações laterais no Surrealismo, os artistas que o militaram (esse é o termo) o fizeram com total entrega e convicção. No caso da pintura, reencontramos no surrealismo, volumes trabalhados, utilização da perspectiva para representar o espaço; elementos tradicionais dessa arte que foram reutilizados sem cerimônia pelos pintores surrealistas. Basta olhar para os quadros para sentir esse revigoramento da figura.

P.S. Durante o século passado abusou-se da vertente fantástica da arte, tanto na pintura como na literatura, tornando-a, em muitos casos, artificial e retórica. Não sou apreciador da pintura de Salvador Dali, que enquadro como pioneiro no vício da expressão fantástica que estou criticando. Separo, em contrapartida, dois nomes que aprecio de forma particular como exemplo da melhor pintura surrealista: Max Ernest e Paul Delvaux.

 

APONTAMENTOS SOBRE A ARTE ABSTRATA


“Não existe arte sem um grau de abstração”, afirmou Fayga Ostrower, artista e educadora. O mais convicto naturalismo também abstrai, pois, como todo esforço para representar a realidade ele é, no final das contas, um artifício; e portanto, é seletivo. Um pouco de reflexão também logo nos levará à conclusão de que é impossível reproduzir a realidade na arte.
Ao fazer de saída essas afirmações, atenuamos a polêmica sobre a proeminência, seja do modo figurativo, seja do modo abstrato, como expressão pictórica mais válida. Polêmica que chegou a ser calorosa no século vinte e que às vezes ainda reacende no meio artístico e no mercado de arte.

 No inicio do século passado foi possível ver, de forma até didática, o momento da passagem, da figura para a abstração; principalmente em Kandinsky; mas é necessário frisar que o impacto, a reação no meio artístico quando da produção das primeiras pinturas abstratas, ocorreu no contexto burguês, individualista, da arte europeia, depois de séculos de um figurativismo poderoso. Contexto burguês de artistas, entendidos já como mais do que artesões apenas, mas como homens de cultura. É necessário, finalmente, deixar assinalada a ressalva, que motivos abstratos (arabescos, geometria) foram maravilhosamente desenvolvidos na arte islâmica, e também na produção de padrões de tecidos, em outras culturas.

 Feitas as ressalvas, ao observar o caminho evolutivo contemporâneo da abstração, vamos até a utilização de materiais, superfícies, que viriam a extrapolar o uso convencional de telas e tintas; além de constatar que o artista,  opta pela abstração normalmente o faz depois de passar pela figura, e que  a abstração é opção mais autêntica e consistente, depois disso. É aconselhável, portanto, que o jovem estudante, e futuro artista, comece por estudar e tentar dominar os segredos da figura para, só então, se sentir necessidade, optar pela abstração.

A arte abstrata, pode-se dizer, é um estágio intelectualizado da arte, distanciado do caráter mágico da figuração; desenvolvendo-se na maturidade do artista. Ao dispensar a referência à natureza e aos artefatos que povoam a cultura humana, no caso da pintura, ela torna-se só pintura — arte pura — opção defendida em termos teóricos e às vezes, até mesmo em termos religiosos, por alguns artistas no do início do século vinte.

Em seus sinais mais remotos a pintura foi figurativa. Ainda hoje o impulso comum de quem começa a desenhar, a pintar, é figurativo; esforço em parte inconsciente, de intenção mágica; tentativa de exercer domínio sobre a realidade: desenhávamos (quando crianças) ou desenhamos adultos, aquilo que nos fascina ou o que nos causa temor; e é praticamente inevitável que isso apareça na forma/figura.

A plenitude da arte clássica; (e o seu posterior renascimento), estabeleceu-se com o domínio da representação da anatomia humana, com o domínio da representação de todas as formas da natureza, estendendo-se à figura dos artefatos criados pelo homem. Tudo isso regido dentro da conquista da ilusão de profundidade no espaço bidimensional da folha de papel, da tela ou das paredes; pelo método da perspectiva. A esse conhecimento somou-se a técnica do claro escuro para transmitir a sensação de volume. Poucas conquistas na esfera das artes visuais fascinaram tanto, foram tão arduamente alcançadas, como a representação da profundidade e do volume no espaço bidimensional.

 Vale refletir: porque essas conquistas foram quase que inteiramente desprezadas pela arte moderna?

Sem dúvida o prestígio da ciência e as suas descobertas desafiaram a arte, colocaram diante dela uma nova compreensão da realidade, desafiaram um novo caráter naturalista. Perderam a proeminência na pintura, a relação fundo figura, a ilusão de primeiro e segundo plano — perdeu valor, o caráter ilusório da arte, enquanto crescia a importância da expressão da simultaneidade, os efeitos da luz natural sobre as formas. Ver a figura em todos os seus lados, simultânea e instantaneamente, decomposta, (analítica ou sintética), como no Cubismo; ver as formas sob o efeito da luz natural ao levar a pintura para fora do estúdio, como fizeram os pintores impressionistas, foi tentativa de alcançar outro patamar naturalista. Assim, é compreensível a rebeldia diante do cânone clássico: uma nova sensibilidade artística solicitava novos conhecimentos, novas atitudes e soluções plásticas; livres do dogma da academia. Mas, o impressionismo e o cubismo, mantiveram-se ainda dentro da expressão figurativa; a pintura abstrata foi além:  buscou a independência do fazer artístico; livre da natureza, e de qualquer preocupação que não fosse a arte em si mesma. Ao abstrair, os pintores chegaram a modos extremamente sintéticos, sutis, de pura arte.

 Por isso, a arte abstrata é forçosamente sofisticada; trouxe para grande parte do público uma dificuldade, muitas vezes, insuperável de apreciação. Passou a ser necessário descondicionar-se da grande tradição figurativa, ter conhecimento dos fundamentos da linguagem pictórica (o que demanda estudo) para apreciar essa arte.

Isso foi bom para a pintura? E porque o figurativismo nunca foi inteiramente superado, e se renova na sensibilidade de novos e autênticos artistas? Essas perguntas demandam um aprofundamento do que foi anotado brevemente aqui.

sábado, 3 de janeiro de 2015

TELEPATIA

Já faz muito tempo que ocorrências telepáticas, como a que me referi no texto sobre Ferreira Gullar, não me acontecem. Lembro-me de outra, também pertencente a esse mágico universo da poesia, que tanto marcou e enriqueceu a minha vida.
Sem dúvida, as aulas do professor Alfredo Bosi, autor da “História Concisa da Literatura Brasileira” entre tantas outras obras, foram as melhores que assisti na faculdade. Lembro-me dele entrando na classe, desatenta, em seu burburinho antes d...a aula começar. Sentava, dava umas batidinhas na mesa pedindo silêncio e começava a falar. O tom baixo era a sua característica, mas a aula sempre engrenava sem maiores problemas. Então, ele desfilava a sua cultura literária invejável dando-nos o privilegio do acesso a ela.
Muito tempo depois da época da faculdade, um dia de manhã, antes de ir para o trabalho eu estava pensando na Divina Comédia, na força incomum de um amor adolescente e o seu reflexo em uma obra importante; uma referência à Dante e Beatriz feita num ensaio de Jung. Por aqueles dias eu andava lendo e pensando na Divina Comédia. Então, me lembrei de que já tivera o privilegio das aulas do professor Bosi; e que, lamentavelmente, não tinha mais acesso a ele, à sua erudição, aliada a uma formação construída na Itália.
Na hora do almoço tomei o rumo da Av. Faria Lima. Era o final dos anos oitenta e eu, já inteiramente adaptado à Região da Rebouças, estabelecera um traçado de caminho dos mais agradáveis: seguia pelos fundos do Jardim América, pela Sampaio Vidal, virava pela encantadora Rua Maria Carolina como se adentrasse em um bosque proibido; ate a pequena Rua Grécia, que desembocava na Faria Lima, exatamente em frente ao Shopping Iguatemi. Ali, o premio final do trajeto era o café do restaurante Almanara; considerado o melhor café de São Paulo. A minha versão preferida desse café era com leite e canela, adoçado com açúcar mascavo.
Pois nesse dia de manhã, em que eu pensara na Divina Comédia, nas aulas do professor Bosi , quando tomava o meu café, ele veio chegando com a esposa, Ecléa Bosi, para tomar café exatamente ao meu lado. Ele me reconheceu; tínhamos amigos em comum. Conversamos, e dessa vez falei da coincidência: ter pensado nele naquela manhã, dando detalhes também do meu interesse sobre a Divina Comédia. Ele sorriu, e disse que acreditava mesmo nessas comunicações telepáticas. Nos despedimos. Já faz tempo isso; tenho uma porção de livros do professor Alfredo Bosi entre os meus livros.

"UMA LUZ DO CHÃO"

Outro dia li uma crônica de Ferreira Gullar sobre a amizade dele com Vinicius de Moraes e Tom Jobim; em seu estilo despojado de cronista, descontraído, o teor humano de todo conteúdo. Velho leitor (principalmente da poesia) de Ferreira Gullar, tenho um pequeno relato pessoal sobre ele.
Precisamente em 1986, depois de exatos dez anos trabalhando na Av. Paulista, mudei de emprego e fui trabalhar em uma agência de publicidade na Av. Rebouças. Os meus agradáveis hábitos, adquiridos nas generosas duas horas de almoço na Av. Paulista, estavam demasiadamente enraizados em mim: visitas pontuais ao Masp — à sua pinacoteca, mostras itinerantes, concertos de música especialmente programados para quem trabalhava naquele pedaço extraordinário da cidade — os passeios no Trianon. Assim, me senti tão deslocado no outro endereço que, involuntariamente, na hora do almoço, eu saía, pegava uma das muitas linhas de ônibus que subiam a Rebouças e viravam na Paulista. Nela, eu saltava no ponto do Trianon Masp.
Na manhã em que aconteceu eu tinha conversado com um colega de estúdio. A conversa tomara  o rumo do assunto transcendental, da Religião. Citei um texto depoimento de Ferreira Gullar chamado “Uma luz do chão”, em que o poeta, na época de sua convicção marxista, fazia valer a sua fé no “homem humano” criando essa bela expressão, “luz do chão”; afirmando essa luz, a ser conquistada, e não recebida pelo homem como dádiva que descesse dos céus. Muito bem, na hora do almoço fui para Av. Paulista.
A manhã de inverno estava nublada, fria. Pelo famoso vão do Masp subi a dura escada de concreto, vazada, chegando ao primeiro andar, onde sempre aconteciam exposições itinerantes. Havia uma exposição de fotos, e o poeta estava ali, lentamente olhando. Nunca tinha visto alguém tão digna e inconfundivelmente poeta; em toda a sua figura, esmerada: roupas, expressão do rosto, a cabeleira; pele e cabelos muito bem cuidados; um artista mesmo. O espaço era pequeno e ele estava só. Eu me aproximei com a intenção de me referir à grata coincidência de, naquela manhã, exatamente, eu  ter falado no texto “Uma luz do chão”. Mas, curiosamente, o foco motivo que me impulsionou a abordá-lo fugiu; e eu disse apenas que era um admirador da poesia que ele escrevia; e ele respondeu: “que bom”. Falamos uma ou outra trivialidade; ele disse que estava matando um pouco o tempo antes de embarcar para o Rio de Janeiro. Despediu-se. Fiquei um instante olhando a exposição de fotos, mas quando descia de volta a escada de concreto, ainda vi o poeta na outra calçada da Avenida Paulista, caminhando vagarosamente, bem agasalhado, com as mãos para trás, a cabeleira... Qualquer pessoa, atenta, transeunte da avenida, teria a certeza que se tratava de um poeta; mesmo sem conhecer Ferreira Gullar.