quarta-feira, 31 de dezembro de 2014

BÊBADOS

“Não bebo por mero alegrar-me com o vinho nem para zombar da fé — não, é só para esquecer de mim mesmo por um momento que desejo embriagar-me, só por isso.”
OMAR KHAYAM
“Bebo, porque é líquido”
JANIO QUADROS

 Ouvi dizer que o poeta Vinicius de Moraes chamava o whisky de “cachorro engarrafado”, “o melhor amigo do homem”. Escutei também uma história, acho que próxima do fim da vida do poeta, de que certo letrista de música popular foi visitá-lo uma manhã. Quando entrou, depois de alguém atendê-lo na porta, viu Vinicius no fundo da sala. De sua parte, ao ver o amigo, de longe Vinicius abriu os braços, de satisfação; e caiu-lhe as calças. Há muito para se recordar de Vinicius, mas para a esse letrista ficou essa imagem final do poeta, de braços abertos, só de cuecas, as calças no chão. Como devia estar bêbado, eu  imagino que o incidente nem tenha incomodado Vinicius. Aliás, tive um amigo (entre outros que bebiam) que já havia me descrito a dificuldade de um bêbado para vestir as calças: acertar uma perna no buraco enquanto se equilibra na outra.
Houve a famosa trinca de escritores americanos alcoólatras, Scott Fitzgerald, William Faulkner, Ernest Hemingway. Fitzgerald morreu aos quarenta e quatro anos, aniquilado por um alcoolismo pesado; Faulkner morreu mais velho, mas aos cinquenta já estava exaurido pelo consumo de álcool; Hemingway, em certa altura, estéril para escrever, colocou os canos de uma winchester na boca e puxou o gatilho. Posterior a essa vem a outra trinca, Jack Kerouac, William S. Burroughs, Allen Ginsberg, escritores que no contexto em que estou escrevendo, além do álcool, foram pioneiros no uso das drogas. De Kerouac e sua obra “On the Road” vem o movimento beat. Tive um amigo de juventude que assimilava toda essa pinta na máquina de escrever: cigarro no canto da boca, amante do jazz, muita bebida; "rebel without a case" com cenário pronto. Escrevia uns textos curtos e bem complicados. Isso faz muito tempo e não sei se ele escreveu alguma obra mais extensa. Não vi publicado. É frequente associar a bebida à criação literária, mas não é incorreto afirmar: escritores que bebiam e escreveram obras relevantes o fizeram, apesar da bebida; e sem ela, não há dúvida, teriam escrito mais. Aliás, muitos alcoólatras célebres no final procuraram as clínicas, ou o que se chama AA. No desespero de escapar do inferno nem há tempo para fundar uma AC, para Alcoólicos Célebres.
Da bebida morreu Sócrates — não o grego, que por sentença de morte tomou cicuta — mas o Sócrates Brasileiro, grande jogador de futebol que bebia vinho; Brasileiro assim, até no nome, que contrariou não só os alertas da OMS, mas também aquilo que seria a sua própria orientação, visto que era médico. Outro Brasileiro no nome era o Antônio Carlos, o Tom Jobim,  grande maestro e compositor, alcoólatra, que no final da vida escapou do alcoolismo através do espiritismo. Outros tantos alcoólatras, famosos ou não, sabendo muito bem o que é o inferno procuraram o fervor das religiões para dificílima manutenção da abstinência. Frequentemente gente bondosa, paciente, chama o alcoolismo e o vício das drogas (no fundo dá tudo no mesmo) de doença e pedem compreensão nesse sentido. Tudo bem, mas doença no fim, por que no começo, diante do alerta e da recomendação de qualquer instância ou pessoa a resposta dos bebedores de plantão, pelos bares afora, é o riso. São as “criaturas da noite” como os chama a propaganda, insensível ao luto nas famílias, das vítimas dessas “criaturas da noite” dirigindo alcoolizadas.
Lembro-me de quando a plêiade de bebuns do semanário O Pasquim alardeava: “intelectual não vai à praia, intelectual bebe”. Ora, se alguém que vai à praia não merece atenção especial, que grande coisa pensam que são os intelectuais? Recentemente um sobrevivente do Pasquim apareceu, internando-se muito doente, confessando que durante a vida bebera uma “piscina de cerveja”. Ainda por esses dias assisti uma “edificante” reportagem na Globo News sobre o “lar”, o lugar onde mais seria sentida a ausência do recém falecido escritor João Ubaldo Ribeiro, o Boteco do Tio Sam. Entrevistaram o português (cheio de sotaque) dono do bar, e nesse ambiente de antevisão da saudade, da falta que faria o escritor, ninguém reparou na ironia: o dono do bar um português, o escritor, baiano, brasileiríssimo, que escreveu “Viva povo brasileiro”, tudo isso em um bar chamado Boteco do Tio Sam, com a consagrada imagem do americano de cartola, sobre a porta apontando o dedo.
Às vezes recordo os meus bêbados particulares — os da família, os amigos de infância, juventude, maturidade. É personagem demais, histórias demais. Em resumo: mais longínquo o Totico, figura que no meu bairro as mães utilizavam para assustar as crianças, para elas não saírem na rua. No entanto o Totico era criatura inofensiva que só olhava de longe, com os olhinhos assustados; bronzeado de tanto tempo que não tomava banho; morava numa cabine de caminhão abandonada num terreno baldio. Outro bêbado da vila era um jornaleiro pernambucano de quem já não lembro o nome (eu, viciado na leitura de jornais sempre tive amizade com jornaleiros). Esse pernambucano alternava bebedeiras com períodos de abstinência, contidos em agonia religiosa, lendo Bíblia. E tudo acabava sempre numa terrível queda na cachaça, emborcado no próprio vômito, a banca de jornais abandonada. Dos bêbados da família lembro daquele que uma noite colocou a mulher e os filhinhos no meio da tempestade, fechou a porta e ficou dentro de casa, no tépido conforto do lar e na companhia apenas de sua garrafa de cachaça.
Alguns amigos, na juventude, tentaram me levar a tomar um porre; coisa de iniciação — andar em turma da nisso. Não topei, o porre de esquerdismo, outra doença da juventude, foi suficiente para me deixar um déficit de tempo perdido sem remédio. Assim, fica dito, para não ficar em cima do muro: para mim álcool e drogas não merecem consideração positiva sob nenhum aspecto. Nunca vi as drogas como algo além da apelação, um botão, um click para o puro hedonismo; tentativa desonesta de potencializar uma instância pertencente à natureza e, consequentemente, aos seres humanos: o prazer. Quanto às bebidas (o vinho em particular), em quantidade moderada reconhecidamente faz bem à saúde; além do maravilhoso paladar. Mas o que o bebedor busca na bebida, de fato, é o estado etílico; o entorpecimento, a fuga. Pode-se compreender essa fuga, quanto a pessoas em estado depressivo profundo, desespero, originado na realidade, num grande desgosto amoroso, em perdas dolorosas. A bebida pode ser um lenitivo.
Há moral em tudo que escrevi acima? Sim. Moralismo não. Moral, com a ressalva do gênio de Freud; “O homem não deixa de fazer determinadas coisas porque a moral o impede. Mas, cria a moral para não fazer determinadas coisas”.

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